Por Fábio Aparecido Martins Bezerra
Professor do Departamento de Ciências Sociais e Filosofia do CEFET – MG
Mestre em Educação Tecnológica pelo CEFET – MG (2015)
A sequência lógica e perversa desde o anúncio de cortes para custeio de despesas das Universidades Públicas e Institutos Federais anunciados pelo MEC há cerca de dois meses tem sua continuidade no Projeto de Lei que reestrutura todo o modelo administrativo das Instituições Federais de Ensino Superior (Institutos Federais e Universidades).
Batizado de “Future-se”, esse Projeto de Lei representa o maior pacote de medidas que visam privatizar e restringir o potencial da pesquisa e extensão dos Institutos Federais e das universidades públicas no Brasil, restringindo-os à condição de prestadores de serviços a empresas privadas e até mesmo ao mercado especulativo.
Sob o pretexto de manter investimentos sociais nas universidades e assegurar o seu “compromisso com a sociedade”, “mantendo o respeito à autonomia universitária”, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, apresentou uma série de medidas que celebram a privatização das IFES, através de contratos de gestão privados, criação de fundos patrimoniais, promoção e concessão de créditos para startups e cessão de espaços públicos para a propaganda de empresas como se aquele espaço se tornasse propriedade particular.
Com uma mão, o Governo Bolsonaro e seus lacaios criminosamente retiraram recursos de custeio, sob o pretexto do contingenciamento causado pela crise econômica, aprofundando, ainda mais, o sucateamento das IFES que vem sendo diuturnamente agredidas. Com a outra mão, por sua vez, oferece “generosamente” às IFES o modelo de parcerias Público-Privadas, submetendo na prática a perda de autonomia política em avaliar e decidir quais e como se processarão pesquisas e políticas de extensão, promovendo uma drástica inversão do sentido e do compromisso que as IFES vêm desenvolvendo há cerca de 80 anos no país.
Essa proposta teve um precedente que no passado abriu a porteira para a privatização da ciência e do desenvolvimento tecnológico, quando em Janeiro de 2016, ainda no Governo Dilma Rousseff, foi promulgado o Marco Regulatório da Ciência e Tecnologia, que, em suma, flexibilizava e regulamentava as condições para o estabelecimento de parcerias com empresas privadas via Organizações Sociais (OS) para a administração de laboratórios, centros de pesquisa e desenvolvimento e projetos de extensão, transformando as IFES em incubadoras de excelência para investimentos que teriam a produtividade dos projetos como principal finalidade.
Segundo o projeto “Future-se”, a partir da consolidação de startups uma escalada de projetos de pesquisas e de extensão voltados para os interesses do capital (empreendedorismo, inovação técnica e tecnológica sob perspectiva produtivista, por exemplo) potencializarão a constituição de professores sócios e/ou coautores dessas parecerias que poderão receber via Organização Social (OS) recursos à parte, veiculando laboratórios, projetos e recursos humanos aos interesses empresariais.
As OS deverão, segundo o PL, apoiar os planos de ensino nas IFES, podendo inclusive ter ingerência pedagógica no currículo de cursos ligados a startups de modo a garantir a melhor eficácia das parcerias estabelecidas com a iniciativa privada. Ou seja, para quem pensa que esse tipo de parceria estaria utilizando apenas equipamentos, laboratórios e recursos humanos (docentes e técnico-administrativos), se engana e muito!
Um Fundo de Direito Privado está previsto e deverá ser criado, administrado inclusive por instituições financeiras, e que poderá no futuro promissor ter ações em bolsa de valores para investimentos que garantam recursos com vista a promoção da terceirização de Departamentos ou até mesmo de toda a Unidade de Ensino veiculado ao Departamento “parceiro”.
Se não bastasse, o MEC poderá doar bens imobiliários para as OS para que estas possam integralizar tais bens em fundos de investimentos, como garantia, para a captação de recursos de longo prazo para preservar o Fundo de Investimentos aos “olhos” do mercado de investidores. Ou seja, a doação do patrimônio público como garantia de investimento para o Sistema Financeiro.
É importante lembrar que em paralelo a essa proposta foi aprovado, recentemente no Senado, um projeto de Lei que modifica a avaliação de desempenho dos servidores, possibilitando inclusive o desligamento funcional dos servidores que não conseguirem atender a determinadas exigências. Ou seja, docentes e técnico-administrativos que não se enquadrarem ou não cumprirem as metas estabelecidas de parcerias para manter o custeio das IFES, poderão ser, no futuro próximo, desligados por insuficiência técnica, culminando inclusive em extinção de cursos que não correspondam com essas metas.
Por meio de contrato de gestão, a OS poderá arcar com a remuneração de servidores cedidos pela União, pois a proposta deixa uma lacuna que possibilita ao servidor cedido prestar serviços exclusivamente à OS, quebrando o princípio da Dedicação Exclusiva e criando dentro das instituições que aderirem ao “Future-se” duas classes bem distintas de servidores. Em tempos de cortes de recursos e direitos e de estagnação salarial, não faltará pressão para que muitos servidores acabem coadunando com esse sistema de terceirização privada dentro das IFES, se submetendo ou recorrendo a essa lógica.
Para que se compreenda a dimensão e a gravidade desse PL, projetos que possuam um compromisso com a resoluções de problemas diversos (socioeconômicos, sanitários, ambientais, de Direitos Humanos etc.) marcantes em nossa sociedade, bem como projetos de pesquisa e de extensão com perspectivas sociais voltadas para o desenvolvimento de segmentos da população muitas vezes ignorados pelo próprio Poder Público, certamente não encontrarão investimentos nesse modelo de privatização apresentado pelo MEC, posto que não proporcionarão a lucratividade esperada pelo mercado. As IFES aderindo a esse PL, se tornarão verdadeiros Centros de Desenvolvimento e Pesquisas voltados apenas para a expansão dos interesses do mercado empresarial. E aquelas que não aderirem serão paulatinamente esgarçadas a conta gotas até sucumbirem.
O Governo neoliberal de Jair Bolsonaro justifica tal medida por conta do contexto da crise econômica. Todavia, o que pretende é liquidar as universidades públicas, os Institutos Federais e os Cefet’s por meio do desmonte progressivo das Instituições Federais de Ensino e da desvinculação do Estado para com o custeio e as responsabilidades constitucionais. Essas instituições hoje respondem por cerca de 90% da pesquisa científica em diversas áreas e possuem uma significativa gama de projetos de extensão que promovem condições de acesso às populações mais carentes em todo o país para o potencial que a ciência e a tecnologia podem proporcionar.
Mesmo que alguns advoguem a tese de que não se está autorizando a cobrança de mensalidades (ainda), a privatização das IFES está em curso acelerado com esse projeto e certamente abrirá precedentes para no futuro próximo justificar a cobrança de mensalidades. Essa questão inclusive deve ser reforçada e devidamente contextualizada, pois na grande mídia a propagação da proposta busca criar uma falsa ilusão de que o caráter público das instituições estaria preservado.
Entre os critérios de manutenção dos cursos, para aquelas instituições que se vincularem ao “Future-se”, o MEC estipula um percentual mínimo de permanência nos cursos de graduação. Muito provavelmente diversos cursos receberão recursos provenientes desse fundo privado para o custeio de bolsas aos estudantes que se vincularem aos programas mantidos pela OS.
Na prática, cursos que não conseguirem celebrar esses convênios (por exemplo, cursos de Ciências Humanas) terão maiores probabilidades de não atingir as metas mínimas estipuladas, possibilitando dessa forma o consecutivo fechamento do curso em curto prazo.
Estamos diante de um dos maiores, se não o maior, ataque que as IFES já sofreram nesses últimos anos e estamos convencidos de que a ampla e irrestrita unidade de todos os segmentos que compreendem as ameaças em curso deve ser um dos esteios de nossa resistência e mobilização contra o desmonte e o fim dos Institutos Federais e das Universidades Federais. Esse projeto não traz futuro algum às IFES a não ser a capitulação à lógica neoliberal e ao desmonte de um patrimônio que ainda é referência mundial em política pública que envolva ensino, pesquisa e extensão.
É importante destacar que nem a Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), nem a União Nacional dos Estudantes (UNE), o CONIF ou o ANDES-SN, ou o SINASEFE, entre outras entidades nacionais que representam os segmentos que compõem as IFES, foram consultadas sobre projeto que trará imediato impacto na vida administrativa e na função social das IFES. Para se ter uma ideia da forma autoritária e acossada como esse projeto recai sobre as IFES, foi criado um embuste de consulta pública na página do MEC que sequer possibilita ao internauta se posicionar claramente em oposição ao projeto!
Nos últimos meses, milhares de estudantes, servidores e pais saíram às ruas em defesa do real futuro das IFES e demonstraram a disposição na luta pela defesa desse patrimônio histórico. Agora, mais uma vez, estamos desafiados a demonstrar a nossa capacidade de mobilização, de convencimento e de resistência a mais uma tentativa de golpear e aniquilar a educação pública no Brasil!