A República ontem e hoje

Mariana Affonso Penna

Neste ano, frente a um cenário calamitoso devido à pandemia mundial, as eleições municipais excepcionalmente ocorreram no mês de novembro, coincidindo com a data que instituiu a República Brasileira.

O regime instaurado em 1889 modificou a chefia do Estado, substituindo a lógica monárquica de sucessões hereditárias por cargos presidenciais temporários e, a princípio, por via eleitoral. O Brasil hoje se mantém como um regime republicano, mas a complexa trajetória que nos distancia do final do século de XIX, nos confere uma república bastante distinta daquela de outrora. Em verdade, a república de nossos dias já é de fato bastante distinta daquela de poucos anos atrás. A história é mutante por essência, e por vezes estas transformações se dão de maneira muito veloz em algumas esferas e demasiado lenta em outras.

Por sua complexidade, nem sempre as causas profundas das alterações são perceptíveis àqueles que estão imersos no processo histórico. Por vezes, as motivações destas transformações escapam até aos especialistas no estudo das ações humanas e dos processos que modificam as sociedades no decorrer do tempo.

Compreender o que levou ao fim da monarquia e o que a república modificou ou manteve, foi a intenção da historiadora Emília Viotti da Costa em um livro clássico sobre o tema: “Da Monarquia à República: momentos decisivos”. Reeditado nove vezes, os textos que deram base aos capítulos foram escritos ainda no final da década de 1960, um período turbulento da história nacional. Em que pese a distância em relação aos nossos dias, ainda é um trabalho de referência para entender o tema.

A autora investiga as origens da República refletindo as diversas interpretações surgidas tanto no calor do momento, como aquelas elaboradas à posteriori. Percebe que, embora fáceis de serem assimiladas e instrumentalizadas na ação política, as explicações produzidas tanto por republicanos como por monarquistas logo após os eventos, estavam demasiado focadas nos indivíduos, suas opiniões e ideias. As virtudes ou vícios das grandes autoridades, em especial do imperador, eram tomadas como causas para as vitórias ou derrotas, a depender da posição política abraçada.

Porém, como adverte Emília Viotti da Costa, a história é muito mais complexa e “não basta conhecer os homens e episódios”, é preciso conhecer as causas mais profundas das transformações. Foi assim que, investigando os vários estudos produzidos até então sobre a transição da monarquia para o regime republicano, a historiadora percebeu, tal como desconfiava o viajante francês Max Leclerc, quem percorreu o Brasil à época da proclamação, que “o edifício imperial”, construído para outros tempos, “já se tornara caduco e tinha seus alicerces abalados”.

Como um fruto podre que ainda se agarrava ao galho, estava a monarquia às vésperas de ser derrubada por aquela que, para muitos, se tratou de uma quartelada militar. Mas afinal, o que estava podre, e que edifício era este que não mais se enquadrava aos novos tempos?

Em que pese ter se difundido um certo senso comum que atribui o fim da monarquia a um revanchismo dos fazendeiros escravistas, ressentidos pela abolição, a verdade passa ao largo desta explicação, não apenas simplista como historicamente incorreta.

Independentemente de Dom Pedro II, como indivíduo, ser simpático ou não ao escravismo, foi este que deu as bases de sustentação do regime monárquico. Quando caem os escravocratas, que por décadas construíram as bases de apoio político e institucional do Império, o regime não mais se sustenta, abrindo a brecha para a tomada republicana.

Decadentes, os antigos latifundiários de base escravista, fossem os do açúcar nordestino, ou do café no Vale do Paraíba fluminense, foram suplantados pelo poderio crescente dos cafeicultores do dinâmico Oeste Paulista. Estes, em pouco tempo, despontaram como os novos senhores não apenas na economia como, consequentemente, na política nacional, ocupando os espaços de poder.

Em que pese a mudança na fração dirigente, que conferiu a hegemonia paulista sobre a nação, Emília Viotti da Costa constatou uma série de continuidades: a economia se manteve dependente em relação aos mercados e capitais estrangeiros e a sociedade marcada por abismos sociais. A abolição não significou reparação nem inclusão social, a população que havia sido escravizada ficou abandonada à própria sorte. O domínio paulista trouxe muitos dividendos com a agroexportação, especialmente ao final do século XIX com a crise dos cafeicultores concorrentes no Ceilão (atual Sri Lanka), mas não significou soberania econômica. Uma vez que a economia se manteve, como diria o saudoso Caio Prado Júnior, extrovertida, ou seja, voltada para fora, o incipiente desenvolvimento do mercado interno e a pouca diversificação econômica tornam o país frágil às oscilações dos mercados internacionais e extremamente vulnerável às suas crises – uma realidade que se estende aos nossos dias.

Nos últimos anos, vivemos mais uma vez um período turbulento na política nacional. Uma sucessão de acontecimentos agita o país de maneira nauseante ao menos desde o fatídico ano de 2016. De lá para cá, tudo muda aceleradamente e de maneira preocupante em nossa frágil república.

Marcada por tantos sobressaltos em sua história, a democracia brasileira, abalada por intercorrências ditatoriais, parecia enfim se consolidar, pouco a pouco, desde a carta constitucional de 1988. A cientista política Marta Arretche, através das pesquisas do Centro de Estudos das Metrópoles, observou que a ordem democrática vinha contribuindo para a redução das desigualdades em meio aos cidadãos brasileiros, ainda que mais timidamente em algumas esferas.

No entanto, há quem analise que este período se esgotou. As eleições de Jair Bolsonaro acenariam para o fim da Nova República, como ficou conhecido o período inaugurado pela redemocratização, em 1985. É o caso da historiadora francesa Maud Chirio, para quem o presidente eleito em 2018 significa um risco real para a ordem democrática, caso suas instituições não sejam capazes de frear os anseios autoritários do chefe de Estado.

Vivemos, portanto, um período de muitas incertezas, uma época em que cada retrocesso parece gritar em nossos ouvidos que não existe fundo do poço. Mas, por outro lado, talvez precisemos buscar também as causas mais profundas desta tragédia, uma vez que não é possível desfazê-la, afinal, “Inês é morta”. Mas se soubermos as razões subterrâneas pelas quais nos afundamos recorrentemente neste mar de lama de idas e vindas autoritárias, talvez tenhamos ferramentas para tentar modificar de maneira mais perene este momento tão triste de nossa história. E elas parecem apontar para o problema das continuidades na história nacional e para seus acertos de contas nunca efetivamente realizados, num país herdeiro do escravismo e de economia extrovertida e dependente.

 

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