Uma ofensiva reacionária sobre a educação

Por Fábio Aparecido Martins Bezerra – Professor Efetivo do Instituto Federal Sudeste de Minas Gerais

Os ataques simultâneos que a Educação Pública vem sofrendo demonstram que esse processo de privatização em curso não pode ser compreendido apenas em seu patamar econômico ou enquanto um projeto de governo específico – como muitas vezes várias organizações do campo da esquerda conceituam – com a restrição dos investimentos sociais, o desrespeito ao cumprimento do piso salarial dos docentes, o ataque aos direitos e conquistas.

O processo em curso está diretamente associado a um projeto de sociedade e de Estado que está sendo moldado paulatinamente através de diversas medidas que ultrapassam as tradicionais agendas conservadoras neoliberais, que sempre elegeram o funcionalismo e os serviços públicos como “bodes expiatórios”.

Nesse “novo” patamar, as medidas em conjunto ultrapassam os limites da esfera econômica, conservadora e tradicional; estão alinhadas com uma perspectiva reacionária, que, entre seus principais objetivos, visa remodelar e limitar o acesso ao desenvolvimento cognitivo mais amplo e crítico, a formação politécnica e de base científica; promovendo a segmentação epistemológica, o adestramento funcional às futuras gerações, para atender não somente as perspectivas utilitaristas do mercado, mas a formação de uma nova subjetividade alinhada ao padrão de alienação geral combinada com as investidas e a sofisticação da indústria cultural e seus mecanismos de dispersão e mercantilização da cultura e da existência humana em todas as suas dimensões.

A contrarreforma do ensino médio, o projeto de lei “Escola Sem Partido”, o congelamento de investimentos nas áreas sociais, compreendido na Emenda Constitucional 95/2016, e a Lei das Terceirizações são alguns exemplos das medidas que estão associadas a esse projeto e que irão, se não conseguirmos ampliar a luta em defesa da educação pública, democrática e laica, lograr êxito no propósito de remodelar de forma ultraconservadora a formação das futuras gerações de estudantes país afora.

Entre todas essas medidas, destaca-se em especial a implementação, a partir do primeiro semestre de 2019, da contrarreforma do ensino médio, agora blindada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) aprovada recentemente. A contrarreforma do ensino médio deve ser compreendida sob esse contexto totalizante: político, econômico e cultural e que traduz um projeto que está associado à remodelação da sociedade brasileira frente aos interesses da lógica do capital e a manutenção do status quo de dominação frente aos novos cenários e contradições que se avizinham.

Algumas dessas dimensões, que se mesclam na esfera dos interesses econômicos, políticos e ideológicos e que devem ser enunciadas para que se possa ter a devida noção da gravidade do momento e os riscos da fragmentação e do reducionismo que essa reforma irá produzir, pondo em risco o aprendizado da juventude trabalhadora e a possibilidade de um ensino público de qualidade, devem ser desde já debatidas nas escolas, com os estudantes, trabalhadoras(es) em educação e pais, de modo a que se possa cerrar forças para resistir às investidas.

A primeira dimensão está associada à reformulação dos currículos, sistematizando a oferta em cinco itinerários formativos: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional, o que a priori parece razoável em relação à formação de acordo com as preferências do educando, mas esconde uma dupla e nefasta ameaça. À exceção de matemática e língua portuguesa, garantidas nos três anos do ensino médio, os demais itinerários poderão acoplar disciplinas comuns em um mesmo conteúdo. Por exemplo, o profissional de História poderá ministrar ao mesmo tempo, além dos conhecimentos da ciência da História, a Geografia, a Filosofia e a Sociologia; o docente em Biologia poderá ministrar no mesmo conteúdo temas relativos a Química, Física.

A priori a proposta parece flertar com a ideia de interdisciplinaridade, mas o real interesse é o de reduzir substancialmente a qualidade da abordagem e a análise devida do conteúdo de cada uma dessas áreas formativas, sistematizando em áreas comuns que, além de alijar o conhecimento, proporcionarão uma redução significativa do quadro de trabalhadores(as) em educação nas redes públicas em todo o país!

O rebaixamento da qualidade de ensino traduz ao mesmo tempo o descompromisso com a formação mais ampla e qualificada, em especial dos filhos da classe trabalhadora, desqualificando e reduzindo, por sua vez, as chances de concorrência com a educação privada em vagas nas universidades públicas, por exemplo.

Isso irá reproduzir a nefasta lógica da dualidade na formação acadêmica, ou seja, uma educação retalhada e segmentada para a classe trabalhadora e outra mais sofisticada, ampla e universal para as classes abastadas, nas escolas privadas. E essa diferenciação na qualidade de ensino determina diretamente um conjunto de situações que interferem na reprodução do sistema capitalista.

Por outro lado, tal medida possibilita também aos governos neoliberais um ajuste de contas duplo (político e econômico) contra as(os) trabalhadoras(es) em educação, pois visa a enfraquecer a força da principal categoria que em todo o país, há muitos anos, vem promovendo lutas e greves heroicas, denunciando a lógica perversa do sistema da Dívida Pública, que retira recursos do ensino público e serve como esteio para justificar a supressão de direitos trabalhistas e o não cumprimento do piso salarial.

Desse modo, em curtíssimo tempo, poderá ocorrer uma redução em até 40% do total de vagas no magistério tanto no ensino fundamental quanto no médio nos próximos anos, promovendo sem muito alarde, o propalado mantra do ajuste e enxugamento na máquina pública com redução de gastos com o funcionalismo e redução do Estado para a glória e graça do Superávit Primário e a alegria dos credores e das Agências de Financiamento.

Não bastasse isso, os sistemas de ensino poderão firmar parcerias com a iniciativa privada para que parte do ensino (até 20% diurno, até 30% noturno e até 80% EJA) possa ser ministrado via modalidade educação a distância (EAD), reduzindo dessa forma custos adicionais com a manutenção escolar, podendo promover o fechamento de vagas presenciais, além de possibilitar a padronização ideológica, de base acrítica e conservadora, dos conteúdos ofertados, ressaltando e sobressaindo a linha pedagógica que explora as competências e habilidades que interessam ao mercado, formando cidadãos ou melhor, mão de obra atualizada com as expectativas do mercado…. E de lambuja, celebrando, com certeza, rentáveis contratos entre o Estado e as empresas privadas no ramo da educação.

Toda essa reorganização curricular orientada na perspectiva da promoção de competências e habilidades que atendam as perspectivas da chamada 4ª revolução tecnológica, estarão condicionadas por critérios estabelecidos pelos sistemas de ensino local, que definirão em última instância, qual(is) itinerário(os) formativo(s) serão oferecidos, o que poderá suscitar modelos pré-determinados pedagogicamente para atender apenas aos interesses do mercado local, esvaziando possibilidades e escravizando toda uma região a um único modelo formativo.

Sem contar que, em médio prazo, essa medida poderá servir como premissa para justificar argumentos que visam reduzir os parâmetros de financiamento da Educação Pública previstos em Lei e que regem a União, os Estados e os Municípios.

No tocante à Educação Profissional e Tecnológica e, em especial, aos IFs e Cefets, o contexto é ainda mais drástico!

É importante ressaltar que, desde que foi constituída a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, que no dia 29 de dezembro de 2018 completou 10 anos, houve uma significativa expansão de escolas técnicas profissionalizantes em todo o país.

Se antes de 2003 eram pouco mais de 120, atualmente ultrapassam 630 unidades em todo o Brasil, combinando diversas modalidades de ensino, em especial o ensino integrado (aquele que contempla todas as disciplinas do ensino médio acrescido de disciplinas da área técnica profissionalizante) preparando, com qualificação devida e compromisso com todas as dimensões formativas, os jovens tanto para a continuidade dos estudos acadêmicos em nível superior quanto para a atuação no mundo do trabalho.

Esse modelo tem sido referência como padrão de qualidade em todos os resultados de pesquisas do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Nacionais Anísio Teixeira (INEP). Interiorizou-se em regiões desprovidas de instituições federais de ensino médio e superior, democratizando o acesso à educação de qualidade, além de ter promovido importantes projetos de extensão e pesquisa sociais junto às comunidades locais – o que não obstante não deixou de estabelecer, também e sobretudo, a promoção de práticas e pesquisas sob perspectivas produtivistas em várias localidades. Sem sombra de dúvidas é o principal modelo de educação pública, democrática e de qualidade que possuímos.

Pois bem, todo esse modelo em curtíssimo prazo poderá ser totalmente remodelado, retalhado e, em essência, destruído.

Enquanto modalidade de ensino técnico profissionalizante, os Institutos Federais (IFs) e Centros Federais de Educação Profissional e Tecnológico (CEFETs) existentes já estariam enquadrados no quinto itinerário e, sendo assim, a obrigatoriedade do ensino integrado estaria comprometido, pois essa modalidade, após a contrarreforma do ensino médio, privilegia apenas a formação técnica.

Além disso, até mesmo os cursos profissionalizantes poderão ser terceirizados através de parcerias com instituições privadas (a Lei faculta essa possibilidade), por exemplo, com instituições privadas como o Sistema S (Senai, Senac, Sesi, Sesc etc), que poderão, por exemplo, assumir tanto o gerenciamento das unidades existentes e ou a oferta de disciplinas técnicas nessas unidades.

A Contrarreforma do Ensino Médio, associada às outras reformas e medidas regressivas ocorridas sob o Governo Temer e que terão continuidade no Governo neofascista de Jair Bolsonaro, deve ser entendida como parte de um conjunto de medidas que visam não apenas atacar direitos sociais e trabalhistas, reduzir investimentos e abrir espaços para uma investida do mercado ainda mais avassaladora na educação pública.

Deve ser compreendida, sobretudo nesse novo contexto de reação burguesa, como um mecanismo associado a outros que possuem a perspectiva de remodelar a estrutura social brasileira de modo a recondicionar e consolidar a curto e médio prazo um novo padrão de reprodução da sociabilidade capitalista no Brasil, sob todos os níveis, principalmente a formação cognitiva e funcional, possibilitando assim os ajustes necessários às exigências dessa nova etapa de ataques do Capital.

Nessa guerra declarada contra o povo brasileiro, o (des)travamento da agenda neoliberal vem acompanhada de um discurso pragmático e produtivista sob o modelo de gestão, intolerante, maniqueísta e pejorativo na sua conceituação ideológica e repressivo e autoritário na sua condução política, o que torna, por sua vez, ainda mais necessária e imperiosa a unidade com todas os movimentos e entidades que estão nessa trincheira, para promover a resistência e luta em defesa da Educação Pública e democrática e das conquistas existentes nesse campo.

Esses ataques operam em um novo contexto, fruto de uma combinação de fatores aos quais os governos petistas possuem parcela de responsabilidade e que acabaram vicejando o fenômeno recente da fascistização da cultura política no Brasil, que se alimenta, direciona e se retroalimentada da intolerância de ideias e da sedimentação do irracionalismo, do preconceito, da histeria coletiva acarretada pela violência e pelo medo.

Sabemos que nesses próximos meses de tentativa de implementação da contrarreforma do ensino médio, os ataques aos educadores(as) serão ainda maiores, assim como os ataques às universidades públicas com redução de recursos, patrulhamento ideológico, defesas de privatizações e perseguições políticas alimentadas por calúnias e acusações falaciosas e de puro preconceito.

Apesar da sua aprovação, não podemos dar por encerrada essa luta contra os retrocessos que a contrarreforma do ensino e a BNCC irão trazer à juventude trabalhadora. Muitas das medidas serão veiculadas diretamente pelas Secretarias Estaduais de Ensino, o que deverá desdobrar em novas campanhas e outras estratégias de resistência.

As declarações ofensivas dos asseclas do governo Bolsonaro sobre a educação, pautadas e referendadas pelo pseudoprojeto do Rasputin brasileiro, o astrólogo Olavo de Carvalho, já enunciam a guerra de guerrilha que irá ser travada nesse campo nos próximos meses e o quanto a unidade de ação do conjunto das entidades sindicais, estudantis e populares deve ser o esteio para a construção de uma Frente Nacional de Defesa da Educação Pública que resista e se contraponha às ameaças fascistas e aos ataques sistemáticos anunciados.

Vamos à Luta!

 

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