Ariel Franco – jornalista do Sintef-GO
Reportagem especial rememora e analisa as lutas populares e do campo da educação desenvolvidas no 2º semestre deste ano.
O primeiro semestre de 2019 foi marcado pelas grandes manifestações de rua em defesa da educação, após o governo sucessivamente questionar a legitimidade das disciplinas de humanidades, dizer que as universidades são locais de prática de “balbúrdia” e, por fim, cortar 30% do orçamento das verbas de custeio de universidades e institutos federais e de bolsas de pesquisa da pós-graduação. Os atos e greves do setor da educação, principalmente do setor público, foram, até o momento, as maiores mobilizações populares contra o governo Bolsonaro e contra a sedimentação da razão neoliberal nas políticas do Estado brasileiro. Nesta reportagem, faremos uma retomada dos processos de mobilização popular e classista no segundo semestre de 2019, dando prosseguimento à reportagem sobre o primeiro semestre. Porém, faremos antes uma breve análise da situação conjuntural nacional.
Do golpe à miséria
O projeto do Golpe de Estado de 2016 segue em marcha, embora com avanços e recuos. Por um lado, foi realizada a mais profunda reestruturação do Estado brasileiro em suas políticas de Bem Estar Social. O enfraquecimento do sistema de previdência público, o aumento da idade para concessão da aposentadoria, o fim de diversas garantias trabalhistas, o enfraquecimento dos sindicatos, a política de austeridade permanente, a desestatização de grandes empresas públicas (como Petrobrás, Eletrobrás, Dataprev, Serpro etc) e o desmantelamento de grandes empresas privadas do ramo da construção civil e indústria pesada são o resultado direto da Operação Lava Jato e do aprofundamento neoliberal iniciado no segundo governo Dilma, intensificado por Temer e sedimentado por Paulo Guedes. No entanto, nenhum desses processos se deu sem enfrentamento popular.
Alguns fatos concretos demonstram que a piora nas condições de vida é real e vêm se aprofundando com o passar dos anos, além de fomentar, embora de forma ainda desorganizada, os processos de resistência da classe: pesquisa do IBGE divulgada em outubro mostra que o gasto das famílias brasileiras com pagamento de juros e taxas bancárias aumentou 150% em dez anos, tendo consumido 1% da renda familiar em 2018. Pesquisa do Dieese também divulgada em outubro, mostrou que 43,68% da renda de um trabalhador que ganha o salário mínimo é comprometida apenas com os produtos da cesta básica, e que o salário mínimo para sustentar uma família de quatro pessoas deveria equivaler a R$ 3.980,82, quatro vezes acima do atual.
Complementando o quadro, a partir de pesquisas e séries históricas anuais do IBGE, teve-se, no ano passado, a maior desigualdade entre os rendimentos de pobres e ricos no Brasil: o trabalho do 1% mais rico valeu 33,8 vezes mais que o trabalho de 50% da população mais pobre, sendo que o trabalho da parcela mais pobre se desvalorizou em 3,2% de 2017 para 2018 (cerca de R$ 153) e o do 1% mais rico se valorizou em 8,4% (média de R$ 27.774). Tais números corroboram a tese de que a miséria vem aumentando no Brasil: de 2014 para cá, mais de 4,5 milhões de pessoas caíram para a extrema pobreza, fazendo com que o país some 13,5 milhões de miseráveis (número maior que a população da Bolívia).
O aumento da pobreza extrema e o encarecimento das condições de vida, traduzidos em dificuldade de acesso à educação pública, ao lazer, à saúde, aos transportes etc, ou seja, aos direitos humanos mais básicos, é, em última instância, o que tem produzido a onda de protestos e eleições de candidatos de esquerda e sociais-democratas pela América Latina. No caso brasileiro, a onda de mobilizações, que chegou a mais de 200 cidades, levou às ruas milhões de estudantes, pais e mães de estudantes, trabalhadores da educação ou sensíveis à causa da educação e jovens que pretendem entrar no sistema público de ensino básico e superior. As mobilizações impuseram a primeira derrota ao governo Bolsonaro, que, diante das pressões, desbloqueou as verbas e bolsas, neste segundo semestre, que tinham sido cortadas.
12 de julho
Brasília. Congresso Nacional da UNE, Plenária Nacional do Sinasefe e reunião do Conselho Nacional do Andes ocorrem simultaneamente na capital federal. A presença de milhares de estudantes e profissionais do sistema público de ensino técnico e superior foi responsável pela maior manifestação nacional desde a Greve Geral que parou o país em 14 de junho, contando, além dos representantes da educação, com a presença de deputados e lideranças de partidos políticos de esquerda, sindicatos de servidores do judiciário, farmacêuticos, entre outras categorias.
20 mil pessoas iniciaram a caminhada no Mané Garrincha em direção ao Congresso Nacional, onde o ato se encerrou de forma tranquila, embora a Polícia Militar tenha detido oito pessoas. Quatro dias depois, o governo federal apresentaria o projeto do “Future-se”, demonstrando não ter se sensibilizado pelas manifestações de rua e reuniões de gabinete realizadas entre governo e entidades estudantis e sindicais da educação naqueles dias. Tal projeto entraria na pauta de todas as lutas e manifestações que ocorreriam durante todo o semestre subsequente.
13 de agosto
Essa manifestação foi convocada pelas entidades estudantis e sindicais da educação com o mesmo propósito das dos dias 15 e 30 de maio: encher ao máximo as ruas do Brasil e lutar em defesa da retomada dos investimentos em educação, contra o Future-se e pelas liberdades democráticas que são constantemente ameaçadas pelo governo Bolsonaro. Neste dia, ficou claro que havia uma redução numérica em relação ao mês de maio, embora tenham sido registrados atos em 85 cidades pelo país, com a presença de aproximadamente 900 mil pessoas no total.
Em Goiânia, o “Tsunami da Educação” levou cerca de quatro mil pessoas às ruas, que iniciaram a caminhada na Praça Universitária, com direito a roda de samba na concentração, até a Praça do Bandeirante. O público foi composto em sua maioria por estudantes, professores e técnicos administrativos em educação. Ela contrastou com as de maio e junho, quando, além de estudantes e professores, havia majoritariamente trabalhadores, pais e mães de alunos e pessoas preocupadas em geral com os rumos da educação no país. A partir do segundo semestre, o perfil do público ficou mais restrito aos servidores e estudantes e com menor presença de outros representantes da sociedade civil.
7 de setembro
O Dia da Independência é anualmente celebrado em todo o país por movimentos sociais como data em defesa dos direitos sociais e trabalhistas, dos povos originários e das minorias, o “Grito dos Excluídos”. Neste ano, o Grito foi incorporado ao quarto “Tsunami da Educação” e levou cerca de mil pessoas à porta da Catedral Metropolitana de Goiânia, onde a passeata se iniciou.
A presença de movimentos sociais de luta pela reforma agrária e por moradia urbana conferiu a este ato um perfil mais proletário que os outros, unificando a luta em defesa da educação pública, da pesquisa e da ciência com as demandas e lutas populares organizadas pelos movimentos. Pela primeira vez no ano vimos uma manifestação cuja pauta da educação esteve, aos olhos da sociedade e em sua própria organização interna, como uma parte de uma luta mais geral de caráter antineoliberal e anticapitalista.
No entanto, via-se que havia uma nova redução no número de pessoas na rua, que decrescia gradativamente desde o primeiro ato nacional, em 15 de maio, que levou cerca de 30 mil às ruas de Goiânia. Tal fenômeno, longe de ser local, repetia-se por todo o país.
A Greve de 48 horas
Até o início de outubro a conjuntura fervia dentro das IFES: Bolsonaro nomeara, até aquele momento, candidatos não vencedores a eleições para reitor em sete universidades (UFC, UFFS, UFRB, UFTM, UFGD, UFVJM e Unirio), criando desgastes com a comunidade acadêmica que redundaram em ocupações de reitoria, questionamentos nos Conselhos Universitários e protestos de professores, técnicos e estudantes. No caso da Rede Federal, deixou de nomear a professora Luzia Mota, eleita em dezembro de 2018 para ser a nova reitora do Instituto Federal da Bahia, optando por estender o vínculo do antigo reitor, Renato Assunção, na condição de pró-tempore.
Na Federal de Santa Catarina, a mobilização estudantil contra o Future-se e os cortes de verba tinha gerado, desde 11 de setembro, uma greve de estudantes que se disseminou pela universidade e chegou a paralisar aulas em até 50 cursos, tendo durado mais de um mês. A ação motivou os professores a também realizarem assembleia e votarem possibilidade de entrada de greve por tempo indeterminado, o que acabou não ocorrendo.
No entanto, a situação de Santa Catarina foi um dos motivadores para que os sindicatos nacionais de representação dos trabalhadores da educação federal (Andes, Sinasefe e Fasubra) chamassem a Greve Nacional de 48 horas, para os dias 2 e 3 de outubro, numa tentativa de dar novo gás às mobilizações de rua, promover debates, aulas públicas e panfletagens sobre a importância das IFES para a sociedade e acumular forças para um possível movimento paredista das Instituições por tempo indeterminado e por todo o país.
Em Goiânia, no dia 2 de outubro, servidores e estudantes do IFG e da UFG se concentraram na Praça do Bandeirante e em frente ao Grande Hotel, na Avenida Goiás, para exibir e entregar panfletos, folders e cartazes de cunho político e institucional a respeito da função social, científica e econômica que as IFES desempenham para a sociedade. O “Dia de Educação e Ciência na Rua”, como foi chamado, aconteceu em diversas cidades por todo o país, contando com destacada participação da Rede Federal.
O objetivo principal foi aproximar a sociedade do ambiente acadêmico, em um momento que o governo federal bloqueia verbas, corta bolsas de pesquisa e extensão e questiona, junto a parcelas da sociedade civil, a importância e validade das universidades e institutos públicos de educação. E ao longo de toda uma manhã, foi possível conversar com dezenas de pessoas e com veículos de imprensa que foram cobrir a atividade sobre os impactos concretos que as pesquisas científicas realizadas pelas Instituições Federais de Educação em Goiás produzem para a classe trabalhadora. O evento também serviu de esquenta para o quinto ato nacional em defesa da educação, que ocorreria no dia seguinte, como encerramento da greve.
Ruas se esvaziam
O 5º Tsunami da Educação no dia 3 de outubro acabou virando marola, e pouco mais de 150 pessoas estiveram na concentração do ato em Goiânia, na Praça Universitária. No entanto, parte expressiva dos presentes era de servidores e estudantes do IFG e do IF Goiano, somando quase 30 presentes.
Embora a convocação e mobilização para a greve tenha novamente sido unificada entre sindicatos da educação pública federal (Sinasefe, Andes e Fasubra) e União Nacional dos Estudantes (UNE), o governo, três dias antes, havia anunciado um desbloqueio de R$ 2 bilhões no orçamento do MEC. No dia 12 de setembro, o Ministério também havia anunciado o descongelamento de 3 mil bolsas de pesquisa da Capes.
Dessa forma, as manifestações de rua se esvaziaram e passaram a ser constituídas majoritariamente por militantes partidários, sindicais, estudantis e setores militantemente organizados na base dessas entidades classistas e estudantis. O afrouxamento do torniquete nas universidades e institutos federais promoveu, dessa forma, um momentâneo refluxo do movimento de massas que tinha se aglutinado de forma sólida no primeiro semestre.
A pauta que mais movimentou os campi neste segundo semestre foi a luta contra o Future-se, que levou o Sintef-GO a visitar onze campi do IFG e do IF Goiano em dez cidades, realizando debates, assembleias e audiências públicas para a comunidade acadêmica e externa da Rede Federal. O Future-se, proposta que carrega em si todo o receituário neoliberal e mercadológico do governo, serviu para demarcar de forma nítida a capacidade de enfrentamento e resistência crítica do sistema público de ensino no Brasil frente à política de Estado que vem sendo implementada a fórceps pela burguesia brasileira nos últimos anos: 44 das 63 universidades federais do país rejeitaram total ou parcialmente o projeto.
O Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif), que reúne as direções dos 38 Institutos Federais, dos dois Cefets e do Colégio Pedro II, soltou, no dia 31 de outubro, uma nota sobre as minutas recém incluídas pelo MEC ao projeto original do Future-se. O Conif critica a criação de um fundo patrimonial imobiliário conjunto da União que serviria de fonte de custeio complementar para as IFES e destaca que, como é hoje, a Rede Federal cumpre papel pioneiro na interiorização do ensino técnico e profissional e das bases de desenvolvimento social, econômico, científico e tecnológico pelo país. Também reitera “a defesa e a garantia da vinculação orçamentária da União ao preceito constitucional de que o financiamento educacional é um dever do Estado e direito de todos, e reforça o compromisso com a educação pública, gratuita e de qualidade”.
As possibilidades que ficam, portanto, para o fim deste ano e início do ano que vem, é da continuidade a aprofundamento das lutas de resistência no âmbito da educação. O movimento sindical, neste período, deverá assumir maior centralidade, diante do enfrentamento à reforma administrativa do governo, que atacará princípios basilares das relações de trabalho no serviço público. Por outro lado, existe a possibilidade de outros setores sociais assumirem o protagonismo da movimentação de massas nas ruas; ou mesmo, de levantes populares gerais de massa contra a carestia imposta pelo aprofundamento neoliberal, pela instabilidade política e pela falta de saídas que o governo e as classes dominantes oferecem à austeridade permanente, ao desemprego, ao aumento da desigualdade e à retirada de direitos sociais, trabalhistas e políticos.