Sônia Aparecida Lobo – diretora executiva do Sintef-GO
Walmir Barbosa – secretário-geral
No dia 16 de outubro deste ano, o MEC apresentou a segunda versão do FUTURE-SE. Nessa “nova” versão, apesar de algumas alterações, o núcleo do projeto manteve-se intacto. Trata-se de um ataque às Instituições Federais de Ensino superior (IFES) e ao Ensino Público, Gratuito e de Qualidade, promovido por meios jurídicos/políticos. No centro da proposta está a noção de Capitalismo Acadêmico[1] que pretende: acabar com a autonomia das IFES; impor um padrão empresarial de gestão; alterar radicalmente a sua forma de financiamento e atrelar as IFES ao grande capital financeiro. Vejamos a seguir como esses objetivos se encontram delineados no projeto e seus significados no contexto histórico que vivemos.
Breve recuperação histórica
As IFES remontam a aproximadamente 80 anos de história na sociedade brasileira. Essas instituições formaram-se a partir de uma concepção de uma Universidade para o Capital. Essa concepção conviveu, todavia, com outras concepções perifericamente, em especial àquelas referenciadas na noção de Universidade Popular[2], a exemplo dos projetos que se fizeram presentes nas mobilizações e lutas nas universidades públicas no início dos anos 1960, buscando aproximá-la às demandas populares.
A repressão à concepção de Universidade Popular no contexto do Golpe e Ditadura Empresarial-militar (1964-1985) não impediu que as contradições sociais se precipitassem na forma de novos projetos em disputa no interior das IFES. A luta e conquista da autonomia universitária, da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, das carreiras de ensino superior e de técnico-administrativo e do regime de trabalho de dedicação exclusiva docente, presentes no bojo da luta contra a Ditadura e na Assembleia Constituinte de 1987/88, evidenciavam a resistência à concepção de uma Universidade do Capital, bem como à presença de elementos difusos de Universidade Popular.
Nos anos 1990, sob a vigência do modelo neoliberal de reprodução do capital em escala mundial, ocorre a incorporação da sociedade brasileira a esse “novo capitalismo” por meio de um conjunto de medidas focadas na privatização, na desregularização e abertura econômica e na reforma do Estado. Naquele contexto, o governo Fernando Henrique Cardoso foi a maior expressão da aplicação de tais políticas.
No âmbito da educação se desencadeou o processo de refuncionalização das IFES mediante ataque à autonomia universitária recém conquistada, ao avanço de relações privatistas no seu interior e à subordinação das mesmas em relação ao mercado. Pode-se identificar como marcos jurídico-políticos desse processo as seguintes promulgações: a criação das Fundações Privadas de Apoio a Pesquisa (Lei 8.958/1994); a Reforma administrativa do Estado (Emenda Constitucional 19/1998); a lei sobre as Organizações Sociais (Lei 9.637/98); as parcerias público-privadas (Lei 11.079/2004) e o Novo Marco Legal da Ciência e Tecnologia (Lei 13.243/2016).
O projeto Future-se representa, no atual momento histórico brasileiro, a retomada do processo de refuncionalização das IFES sob o contexto de ampla hegemonia das forças políticas de centro-direita e de extrema-direita na esfera político-institucional. Importante perceber que esse projeto se encontra alinhado a um programa econômico-social que compreende pautas de contrarreformas sociais (Reformas da Previdência, Trabalhista, Administrativa), política de ajuste fiscal ultra-severa (Lei do Teto dos Gastos Públicos) e reestruturação do Estado (restrição/eliminação de autonomia institucional, fim da estabilidade no serviço público).
Aspectos gerais do “novo” Future-se
A “nova” versão do Future-se preserva as características centrais presentes na primeira versão (apresentada em julho/2019), como o conteúdo privatista, a alienação de bens públicos em favor da iniciativa privada e o conteúdo autoritário. A subordinação das IFES aos interesses do grande capital é organizada a partir dos seguintes eixos: Empreendedorismo; Internacionalização; Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação. Para a sua implementação, apoia-se em duas estratégias: a primeira relacionada ao contrato de desempenho, leia-se: contrato de gestão, a ser firmado entre o MEC e as instituições que aderirem ao programa e, a segunda, relacionada ao financiamento do programa.
Autonomia Institucional e contrato de desempenho
A “nova” versão do Future-se procurou evitar conflito direto com os gestores das IFES no que diz respeito à autonomia institucional. Abandonou a determinação presente no projeto original no qual a adesão ao programa determinaria obrigatoriamente a contratação de uma OS para participar da gestão das IFES e o estabelecimento de políticas de governança, incluindo aspectos relativos ao ensino. Formalmente, afirma nos seus primeiros artigos que tem como objetivo assegurar a autonomia das IFES.
Na “nova” versão abre-se a possibilidade de, além das Organizações Sociais, as Fundações de Apoio à Pesquisa fazerem também a gestão dos eixos previstos no programa. A gestão ocorreria por meio de um contrato firmado entre as IFES e o MEC – denominado contrato de desempenho – diferentemente da primeira versão, em que o contrato seria firmado diretamente com as OSs.
No que tange ao chamado contrato de desempenho, não está estabelecido ou indicado quais serão os indicadores adotados para mensuração do desempenho, remetendo para o futuro essa discussão. Mas afirma que os indicadores de desempenho serão estabelecidos pelo MEC. O contrato prevê ainda que só no futuro serão estabelecidos prazos de execução, obrigações em relação aos indicadores e sistemática de avaliação.
O contrato de desempenho equivaleria a um “contrato de gestão” no qual estão internalizados o controle e avaliação de desempenho como instrumentos coercitivos. Tal possibilidade de contrato ampara-se no §8º do art. 37 da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), aprovado como Emenda Constitucional nº 19, de 1998, no âmbito da aprovação do Plano Diretor da Reforma do Estado do Governo FHC. Conforme estabelecido na CF/1988, esse contrato tem que prever o prazo de duração, os controles e critérios de avaliação de desempenho, os direitos, as obrigações e responsabilidade dos dirigentes e a remuneração do pessoal.
Em sua abertura, o §8º do art. 37 da CF/1988 promete autonomia gerencial, orçamentária e financeira aos órgãos da administração que aderirem ao Contrato. Deve-se considerar que esse parágrafo não diz respeito às IFES, posto que estas já contam com autonomia institucional prevista no artigo 207 da CF/1988. Depreende-se daí que a adesão ao Future-se, com consequente assinatura do contrato de desempenho, significa efetivamente a perda da autonomia institucional por ato voluntário dos dirigente/instâncias diretivas das IFES.
Torna-se necessário salientar ainda que não há regulamentação específica para tais contratos, estando abertos a diferentes interpretações e possibilitando interferência na política de pessoal, com consequências possíveis como demissão, controle rígido da produtividade, contratação de trabalhadores fora do Regime Jurídico Único, dentre outros. Assim, o contrato de desempenho fere a autonomia das IFES e remete para o MEC o controle das atividades de Pesquisa, Empreendedorismo e Internacionalização que as mesmas desenvolvem.
Por fim, o Future-se materializa uma ação política em forma de pinça: de um lado, prevê a livre adesão e promete “benefícios especiais” aos aderentes; de outro, condena as IFES que não aderirem ao processo deletério resultante da Lei do Teto dos Gastos Públicos.
A questão do financiamento
A “nova” versão do Future-se prevê a criação de dois fundos para o financiamento do programa: o Fundo Patrimonial do Future-se e o Fundo Soberano do Conhecimento.
O Fundo Patrimonial do Future-se será constituído pelo MEC, gerido por uma organização gestora (no projeto não está explicitado quem a compõe) e uma organização executora (OS’s ou Fundações de Apoio a Pesquisa) que será responsável pela alocação dos rendimentos do fundo em projetos e programas. As receitas serão obtidas, dentre outras formas, por: doações; arrecadação das próprias IFES; locação, empréstimos ou alienação de bens das IFES, bem como direitos ou publicações de dados técnicos, informações, etc.; venda de bens como a marca da Universidade ou Instituto Federal; prestação de serviços; direitos patrimoniais como aluguéis, foros, dividendos, etc; pagamento de matrículas e mensalidades de pós-graduação lato senso; venda de imóveis da união a serem arrolados pelo MEC.
O Fundo Soberano do Conhecimento (FSC), de natureza privada, deverá ser constituído, estruturado, administrado e gerido por instituição financeira, a ser escolhida em processo simplificado e suas ações deverão ser comercializadas na Bolsa de Valores. A União participará desse fundo como cotista, mas as despesas iniciais para a sua estruturação serão feitas pela própria União. Determina que os recursos decorrentes da aplicação serão voltados para o fortalecimento do Future-se; para auxílio às IFES desde que atinjam os indicadores positivos estabelecidos no contrato de desempenho; para ações voltadas à assistência estudantil, desde que vinculas ao empreendedorismo ou pesquisa e inovação. Prevê ainda que a rentabilidade das cotas do FSC pode ser repassada diretamente para as OS’s (neste ponto o projeto não fala das Fundações de Apoio a Pesquisa). Por fim, também prevê que a União poderá doar bens imobiliários para essas mesmas OS’s para que sejam integralizadas nos dois fundos, o mesmo ocorrendo com os imóveis das IFES.
À medida que esses fundos fossem acessados pelas instituições que aderissem ao programa, sua recomposição se faria mediante a venda no mercado de produtos e patentes derivados das pesquisas, gerando o que classificam como um “ciclo virtuoso”.
Afinal, o que quer o “novo” Future-se?
Pode-se afirmar que as versões apresentadas do Future-se tem em vista: acabar com a autonomia de gestão, administrativa e pedagógica que as IFES conquistaram na Constituição Federal de 1988 mediante a imposição de novo padrão de financiamento e do contrato de desempenho.
Na proposta delineia-se claramente o objetivo de submeter o campo da pesquisa exclusivamente à lógica do mercado, instrumentalizando as áreas de pesquisa, desenvolvimento e inovação em favor do grande capital e em detrimento das camadas populares. Pesquisas “aceitáveis” nesse programa são aquelas que apresentem resultados em curto prazo e “realimentem” os fundos com seus “produtos”. Nesse sentido, pesquisas de interesse social – como aquelas voltadas para o desenvolvimento de vacinas e medicamentos para cura/ prevenção de doenças negligenciadas – ou pesquisa básica, não caberiam dentro do que seria o campo de interesse do Future-se.
Pretende ainda entregar para Instituições Financeiras, OSs e Fundações de Apoio a Pesquisa o patrimônio público representado pelas IFES; conduzir as IFES na direção da cobrança de matrículas e mensalidades na pós-graduação determinando uma ruptura da verticalização da formação discente e sua consequente elitização. Submete também a política de assistência estudantil à lógica da inovação/empreendedorismo, excluindo aqueles que nela não se integrarem. Avança ainda na mercantilização do ensino superior por meio do processo de reconhecimento de diplomas por instituições privadas, da flexibilização do doutorado mediante o reconhecimento do título de doutorado reconhecido por “notório saber” e da expansão de mestrados e doutorados ofertados a distância.
A necessária defesa da educação pública, gratuita de qualidade e popular
As Universidades e Institutos Federais estão sob ataque brutal do Governo Federal (e da extrema direita bolsonarista) e da maior parte das forças políticas do Congresso Nacional (da extrema-direita e da centro-direita liderada pelo “Centrão”). Os contingenciamentos e cortes orçamentários realizados em 2019 e os previstos no Orçamento Público Federal de 2020 em tramitação no Congresso Nacional, que ameaçam a manutenção de atividades mínimas das IFES, têm em vista estrangular essas instituições, agrupar docentes, técnico-administrativos e estudantes favoráveis ao programa Future-se e quebrar a resistência a esse programa. O Governo Federal/MEC e as forças hegemônicas no Congresso Nacional têm em vista destruir e/ou privatizar o patrimônio acadêmico, científico, cultural e físico que as IFES acumularam ao longo dos seus 80 anos de existência.
Também quer promover a internacionalização das IFES, vinculando-as a poderosas instituições estrangeiras, alienando-as do engajamento em torno de um projeto de desenvolvimento econômico, social, político e cultural de caráter anti-imperialista e popular. Esse caminho somente poderá ser trilhado por meio do sacrifício da autonomia universitária, do caráter público, da gratuidade, das instâncias democráticas e do financiamento público.
A posição do Sintef-GO é clara: Temos que defender juntos/as (professores/as, técnicos/as-administrativos/as, estudantes e comunidade em geral) a Educação Pública, Gratuita e de Qualidade! É preciso fortalecer a luta e a resistência popular para recusar o Future-se por inteiro e sua concepção de capitalismo acadêmico e de Universidade do Capital!
[1] O que é Capitalismo Acadêmico e Universidade do Capital
Compreende-se por capitalismo acadêmico uma concepção que orienta a refuncionalização da universidade em favor do capital, na sua atual fase flexível e neoliberal, internalizando processos como os de gestão autoritária, de interação imediata entre universidade e capitais financeiros e corporativos, de concepção/organização de currículos para a formação de graduados que o capital deseja e de priorização das demandas das empresas em detrimento das demandas das camadas populares. Isto é, um projeto que tem vista a instrumentalização das universidades em favor da reprodução das relações capitalistas de produção nos níveis econômicos, sociais, político-jurídicos e ideológico-culturais. Assume destaque na fundamentação teórica do capitalismo acadêmico dois eixos, a saber:
- As teorias do capital humano, que postula a necessidade de que a educação venha a ser empreendida como investimento no trabalhador considerado como capital, bem como que seja subjetivado no trabalhador a autocompreensão de que ele é um investidor que investe nele próprio, no desenvolvimento das suas próprias habilidades e conhecimentos, que procura, como todo investidor, obter o máximo rendimento desse investimento;
- As políticas de inovação no campo da ciência e tecnologia nas IFES e da interface com as atividades de pesquisa e desenvolvimento das empresas privadas e/ou públicas.
Ambas são teorias que serão basilares para a fundamentação da ideologia do empreendedorismo no tempo presente. São políticas que determinam a instrumentalização direta e imediata das IFES, sobretudo das suas áreas tecnológicas, aos ganhos de capital. Essas “teorias” e “políticas” contribuem, prática e ideologicamente, para a unificação de gestores capitalistas da educação, empresários, mídia, pesquisadores e educadores com vista a refuncionalizar a vida cotidiana das universidades e institutos federais na lógica do mercado.
Compreende-se por universidade do capital a própria funcionalização da universidade, primordialmente estruturada e organizada para se constituir em um instrumento que opera em favor da reprodução das relações capitalistas de produção em todas as suas dimensões. Projeto que concretamente tende a estabelecer processos como a restrição da democratização do acesso à universidade, a implementação de uma profunda divisão social do acesso às instituições e cursos que reitera as divisões sociais, a supressão da produção e reprodução do pensamento crítico no seu interior e a subordinação direta das universidades aos interesses do capital. Aqui reside o núcleo a partir do qual se pode conceber um projeto alternativo de educação e de universidade, qual seja: a necessária construção de um projeto de educação público, gratuito, laico, unitário e socialmente referenciado que seja capaz de abarcar o trabalho como princípio educativo, a omnilateralidade e a escola/universidade/instituto federal inserida/integrada ao contexto social local; a defesa de um projeto de educação que internalize as dimensões democráticas, inclusivas e emancipatórias no seu fazer educativo; e o projeto de educação que tenha como norte teórico e prático os movimentos de construção da educação popular e da universidade popular.
[2] O que é Universidade Popular e porque a defendemos
A universidade popular não é uma entidade, é uma concepção e processo de lutas no interior das universidades públicas e particulares, articulado às lutas mais amplas por uma nova sociabilidade para além do capital, de modo a garantir o acesso e permanência da juventude trabalhadora e de todas as classes oprimidas nos espaços e processos de produção e socialização dos conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos. É também um processo de luta por outra organização da vida acadêmica, pelo financiamento público, pela política de assistência estudantil e boas condições de vida dos estudantes, pelas cotas sociais e étnico-raciais para estudantes e professores. Também compreende a luta pela construção do currículo concebido numa perspectiva crítica, pelo reconhecimento do saber na sua dimensão universal e dos conhecimentos historicamente produzidos dos povos originários e tradicionais, das lutas dos movimentos sociais, dos grupos sociais oprimidos que vivem do seu trabalho.
A proposta de universidade popular não desdenha dos acúmulos alcançados até o presente momento pelas áreas de conhecimento científico e de desenvolvimento tecnológico. Todavia, as compreende como espaços de luta social no qual projetos políticos alternativos estão em disputa: às sobredeterminações que as dimensões econômicas, políticas e culturais, enraizadas no sistema do capital e seu sociometabolismo impõem sobre a universidade, configurando-a como universidade do capital. Contrapomos sobredeterminações que democratizem as referidas áreas, que as recomponham em termos de organização e de objetivos, que reconheçam objetivamente as potencialidades e limites da natureza e que estejam voltadas em prol da totalidade da vida social, em resistência ao sistema e sociometabolismo dominante, acumulando na direção da configuração da universidade popular. Portanto, trata-se de uma luta que se desenvolve tanto dentro das instituições de ensino superior como da sociedade como um todo.
Parabéns à Professora Sônia pelo excelente texto!
Abraço a todos aí e força que a luta é justa!
Muito bom excepcional professora Sónia